terça-feira, 28 de abril de 2020

O Valor da negativa e a Interrupção como libertação

"A atividade pura nada mais faz do que prolongar o que já existe. Só por meio da negatividade, do parar interiormente, o sujeito da ação pode dimensionar todo o espaço da contingência que escapa a uma mera atividade." (Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço) 

Estamos vivendo hoje uma oportunidade única de transformação em muitos níveis, internos, externos, individuais, sociais...E digo única de fato, pois é uma oportunidade nunca antes vista em nossa sociedade, pois a forma que tudo está ocorrendo carrega uma fórmula poderosa que ao meu ver não aconteceria de nenhuma outra maneira: a desvalorização do sim e a possibilidade do não. 


No livro "Sociedade do Cansaço" de Byung-Chul Han o autor nos apresenta a reflexão sobre vivermos em um momento onde a possibilidade da negativa nos é limitada e desvalorizada. Estamos escravos de uma positividade excessiva onde o valor está no "mais"; produzir mais, para ter mais, fazer mais e não parar nunca. A valorização do fazer e da quantidade de informação (ao invés da qualidade da informação) nos tornou dispersos como zumbis e escravos de nós mesmos. Mesmo que não haja ninguém nos obrigando a agir, entendemos que o valor está apenas na ação e continuamos nos obrigando à uma aceleração constante. Quando não profissional, pessoal, porque até as folgas que deveriam ser descansos, são pautadas em verbos ativos como "ver" um filme ou " ir" à algum lugar; a nossa auto imagem ficou condicionada ao fazer e dizer não à ação é quase tão mal visto quanto um crime. A pausa é proibida. 

Todo esse esquema produz uma falsa sensação de liberdade, pois acreditamos que estamos fazendo o que queremos. Queremos exceder todos os nossos limites físicos e emocionais porque "eu quero terminar a tese", "eu quero ser bem sucedida" ou "eu quero ter a melhor foto no instagram"; e não percebemos que essas não são escolhas, mas apenas reações à um sistema que exibe aceleração como sucesso e pausa como fracasso. O autor ressalta em uma passagem do livro:  "A hiperatividade é paradoxalmente uma forma extremamente passiva de fazer, que não admite mais nenhuma ação livre." Acreditamos estar ativos, porém estamos totalmente passivos diante de um sistema que domina como qualquer outro dominador: através dos nossos medos e inseguranças, através da nossa idéia de valor próprio. 


As maiores doenças dessa sociedade, a ansiedade e a depressão, só reforçam essa perspectiva. O ansioso é aquele que não consegue permitir a pausa nem na sua mente, se estiver se sentindo produtivo continua mentalmente compulsivamente produzindo em seus pensamentos; e se não estiver pior ainda, pois a compulsão soma com a culpa e a mente se agita cada vez mais. O deprimido é o que tenta dizer "não" ao "sim compulsório" desse sistema. É como se ele dissesse "eu tenho o direito de não fazer nada", mas a pressão por desempenho, externa e interna, não permite que esse processo seja tranquilo; dor e culpa o acompanham e a impossibilidade de "voltar à ativa" somada a impossibilidade, ditada por ele mesmo e pelos outros, de permanecer em pausa, só gera mais conflito, mais angústia. Como o autor fala no livro é uma doença de uma sociedade que está "em guerra consigo mesma"

Nossa potência de negar nos foi tirada. Se não temos a possibilidade da negativa como algo de valor, não temos escolhas reais. Não temos alteridade em uma sociedade que só valoriza a positividade e o sim como resposta. As últimas gerações não podem dizer não nem ao excesso e muito pelo contrário, precisam acumular tudo: experiências, coisas, pessoas...Quantas vezes eu já ouvi na clínica "parei porque fiquei doente" e até mesmo "precisei ficar doente pra poder parar." Quantos de nós já forçamos nossos limites físicos e psicológicos à ponto de adoecer em nome da produtividade, da atividade ou até mesmo do prazer?

E agora estamos doentes. Estamos todos doentes! A Terra está doente, o mundo está doente! Somos obrigados à dizer não às saídas, aos encontros, às viagens, à aceleração constante. Alguns ainda resistem à mudança querendo manter a produtividade excessiva via "Lives" no "Online"; porém não há mais como fugir da verdade: houve uma interrupção no curso "normal" das coisas. É um novo momento. Podemos parar? Devemos parar! Por quanto tempo? Só você pode saber o quanto de tempo é necessário.

A interrupção é uma possibilidade única de libertação, talvez a única possibilidade. Se a nossa mente não pode parar ela não contempla, não aprofunda, é só um pensamento atrás do outro, superficiais. Se nós não pudermos parar não há espaço para aprofundamento, não há espaço para o espírito, cada vez mais seremos semelhantes as máquinas e menos semelhantes à nós mesmos. A nossa natureza reside na profundidade do ser e apenas a meditação e a contemplação profunda pode nos permitir ouvi-la. É na pausa, no silêncio, que nos encontramos. 

Mas precisamos trabalhar, ganhar dinheiro, viver em sociedade...talvez sim. Mas será que esse momento não pode nos trazer novas possibilidades? Não seria um "ponto final" em uma frase, que nos permite respirar fundo e refletir antes de começar o próximo parágrafo? Talvez ele nos permita reescrever o próximo parágrafo e transformar o curso da história. 
Como você quer escrever o seu próximo parágrafo? 


Não responda agora! 
Pare. Respire. Medite sobre isso. 
Reação não é ação verdadeira.
Dê tempo para a resposta vir de dentro.
As ações verdadeiras não respondem à nada. 
Elas vêm de dentro.