quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Como sustentar o ego diante da angustia do desconhecido?

O nosso ego é construido por "certezas". Supostas, ilusórias, pois nada é certo na vida, nenhuma verdade é absoluta. A vida é impermanência e toda conclusão surge de uma hipótese construída a partir de um ponto de vista humano. Cada ser é unico. Logo, existem 8 bilhões de verdades.

Mas o nosso ego nao suporta essa realidade. Ele se constroí introjetando cada fala de nossos pais, cada regra de conduta social ou religiosa, cada julgamento que ouvimos das pessoas que amamos e confiamos... como certezas. E essas certezas formam quem somos e como vemos e lidamos com o mundo. 

Quando amadurecemos e começamos a questionar quem somos nós para além do que nos foi dado, começamos a questionar essas supostas certezas e isso é maravilhoso, pois é aí que começamos a ampliar a consciencia  e reconhecer um eu mais profundo e genuíno. Porem o problema é que a certeza é o material principal que nosso ego utiliza para suas construções. Ele nao sabe fazer de outro jeito, sem elas ele se sente frágil e vulnerável. Logo passamos a buscar novas certezas, duras como pedras. 

Nos identificamos, não mais com os pais talvez, mas com politicas(os), filosofas(os), escritoras(os), cientistas, padres, mestras... E acabamos por construir novos muros inflexíveis de verdades. Cada vez mais duros. Cada vez mais inflexíveis. Pois cada vez que desconstruímos uma certeza o ego teme mais ainda o vazio.

É por isso que encarar a morte ou mesmo pensar sobre ela se torna tao angustiante e destruidor. Quase ninguém tem uma verdade absoluta para a morte. As pessoas tem suas crenças, mas não existe um consenso humano sobre essa travessia desconhecida. E é aí que encaramos a incerteza, o vazio, o medo da aniquilação, a angustia de se perguntar "Onde está o ego?" "Pra onde aquela pessoa foi?" "Será que a verei de novo?" "Pra onde eu vou?"  E isso tudo vale também para as pequenas mortes simbólicas..."Pra onde eu vou agora nesse momento novo?" "Quem sou eu quando a minha vida muda profundamente?"

O ego nao é tudo que somos. É apenas a parte consciente. Mas o inconsciente é como a morte, um mistério desconhecido, e nos dá um medo imenso e angustia enorme olhar pra ele e ser olhado por ele, (como nos lembra Nietzsche, quando olhamos pro abismo o abismo nos olha de volta). Porem é somente revelando e sendo revelado pelo desconhecido é que nos libertaremos das prisões que o ego nos encerra. 

É preciso sustentar a angustia diante do desconhecido.

Como? É preciso sustentar o vazio. O abismo. E o olhar do abismo. O nada que precede um novo saber, um novo momento. É preciso continuar. Dar passos, um de cada vez, em direção ao breu. Nem sempre sabemos o que virá, e podemos não saber. Ás vezes é até necessário não saber para poder continuar.

Só pode existir o novo a partir de espaços abertos, vazios dispostos a serem preenchidos. Senão estaremos para sempre fadados a sofrer, cada vez com mais intensidade, de ansiedades e pânicos, de burn outs e depressões diante da tentativa, sempre falha, de segurar o movimento natural da vida.

terça-feira, 29 de março de 2022

Traumas, sonhos e o mundo interior

Porque será que, às vezes, sentimos como se existissem “partes” nossas que parecem trabalhar "contra" a gente, atrapalhando o que queremos alcançar ou a nossa evolução e transformação pessoal?


Essa sensação é real e descrita por muitas pessoas durante o processo terapêutico como uma luta interior, na qual parece que sempre tem uma parte que busca a mudança enquanto outra resiste, apegada a hábitos e comportamentos nocivos. Um dos motivos possíveis para isso acontecer é a forma como a nossa psique é afetada por um trauma.

Situações traumáticas, principalmente as que acontecem em fases da vida em que a nossa psique não tem "ferramentas" suficientes para lidar com a situação e o nosso ego não está pronto para integrar as emoções que surgem, geram uma fragmentação na psique. Dessa fragmentação podem surgir defesas que fazem de tudo para que o trauma não seja revivido. Isto é, partes que fazem de tudo para proteger o ego de entrar em contato novamente com aquelas questões e emoções. 

Só que essas "partes" são arcaicas, primitivas, pouco desenvolvidas, pois por não fazerem parte do todo da nossa psique, não puderam amadurecer. E assim como uma criança indefesa, elas podem interpretar tudo como um ameaça, elas podem entender erroneamente qualquer mudança ou nova vida como uma ameaça para o ego. Ela quer deixar a gente o mais "protegido" possível, e se para isso for preciso nos machucar de outras formas, ela o faz.

Na psicologia analítica entende-se que a busca pela integração psíquica é o objetivo de todo o processo terapêutico, e segundo Jung, nossa psique naturalmente busca por essa integração. Porém nesses casos a integração soa como algo terrível ao ego da pessoa, pois integrar todos os conteúdos seria consequentemente integrar o trauma, quer dizer, trazer para o consciente o afeto contido no trauma e reprimido por tanto tempo. Por isso a resistência ao processo terapêutico pode ser muito maior, sendo necessário um processo de circumbulação, ou seja, circular o tema do trauma aos poucos para preparar a consciência para lidar com ele. Para só então, depois que as defesas protetoras “abaixarem a guarda”, o processo de integração possa ocorrer.

No livro “O mundo Interior do Trauma” de Donald Kalsched, o autor Junguiano, analisa os sonhos de seus pacientes que sofreram traumas e reconhece arquétipos semelhantes nesses sonhos. Ele mapeia essas figuras que representam normalmente um arquétipo de protetor e agressor simultaneamente, que surge na psique traumatizada. Através da análise dos sonhos ele consegue entender muito melhor o funcionamento deste arquétipo, que muitas vezes é um personagem interior recorrente, que aparece de diferentes formas nos sonhos e nas fantasias da pessoa que sofreu um trauma.


“A defesa primitiva não aprende nada a respeito do perigo realista(...)ela funciona no nível mágico da consciência, com o mesmo nível de conscientização que tinha quando o trauma ou traumas originais ocorreram. Cada nova oportunidade de vida é encarada como uma ameaça perigosa ou retraumatização e é, portanto, atacada. Dessa maneira as defesas arcaicas se tornam forças antivida(...)” 
(Donald Kalsched - “O mundo Interior do Trauma”)

Clarissa Pinkola Estes no livro, “Mulheres que correm com os lobos”, também aborda o tema dos sonhos em diversos momentos e nos fala sobre o aparecimento recorrente nos sonhos de inúmeras mulheres de uma figura que ela denomina “o homem sinistro”. Este homem normalmente aparece nos sonhos perseguindo, ameaçando, destruindo ou agredindo de alguma forma o ego da sonhadora. Em outras vezes aparece como protetor, guarda, segurança, e outras figuras que representam proteção. E algumas vezes a figura representa ambas as atitudes no mesmo sonho.

Segundo Donald Kalsched, este seria o arquétipo presente na psique traumatizada que faz essa dupla função de protetor e agressor, pois para essa parte da psique qualquer agressão interna é válida para que o trauma “externo” não seja revivido, de fato, na realidade.


Qual seria então o caminho para quem sofreu traumas?

A Terapia. Principalmente.

No livro o autor apresenta seus casos clínicos e descreve as evoluções que ocorrem no processo de seus pacientes através da fala e da análise de sonhos, são evoluções concretas e impressionantes. Os sonhos contêm informações riquíssimas sobre o nosso inconsciente, nos possibilitando acessar emoções e promovendo questionamentos que, muitas vezes, não teríamos acesso sem analisar os sonhos. Eles são portais para esse mundo interior. É claro que, em alguns casos, o processo terapêutico regride para depois evoluir, em outros paralisa. Não existe uma "receita de bolo", pois em cada ser humano habita um universo.

Porém eu não conheço nenhuma outra forma, além da terapia, de mergulhar nesse universo interno, mapear e conhecer essas partes esquecidas de nós mesmos para trazê-las para luz da consciência e consequentemente para integração. Precisamos abraçar essas sombras, conhece-las e torna-las novamente partes integrantes do todo psíquico. Não é um caminho possível de se fazer sozinho. Então busque ajuda de um profissional que você confie. E confie também em você mesmo e no processo, com paciência e acolhimento, porque ele pode ser longo. Um passo de cada vez.