sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Coringa: A sombra de todos nós


Gostaria de começar esse post dizendo que esse filme é extremamente forte e possuí diversos pontos que podem ser gatilhos para algumas pessoas. Sim precisamos falar sobre tudo isso, mas precisamos também falar com cuidado. Por esse e outros motivos eu não pretendo escrever sobre a questão psicológica do personagem e nem sobre a questão social, tão clara no filme. O que eu escrevo aqui é uma reflexão pessoal sob um olhar junguiano para você que está lendo esse blog, e também para mim mesma. Porque afinal todos nós temos sombras...
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"Eu não sou o que aconteceu comigo, eu sou o que eu escolho me tornar." (C.G Jung)

Com essa frase Jung procurava alertar à todos nós o perigo de se identificar totalmente com a sua história, com as circunstâncias de sua vida, suas dores e sofrimentos. Jung sabia que somos mais do que isso, somos mais do que  o que nos aconteceu, somos mais do que o que fizeram com a gente, e por sermos mais do que isso, temos escolha.

O filme do Coringa me fez pensar sobre a importância do processo de individuação por uma perspectiva mais profunda do que nunca, pois para ter essa escolha é preciso antes ter a consciência de que você não é apenas o seu ego, isto é, você não é apenas um produto do meio e das circunstâncias. Em resumo se você não tem consciência do Self, se você não vivencia um sentido maior do que as circunstâncias da sua vida e das suas dores, você vira um escravo da tensão entre os opostos ego versus sombra. Quanto mais o seu ego se sentir impotente, oprimido, invisível; mais a sua sombra, antes reprimida, toma conta da sua psique, dominando todo o seu ser.



Isso acontece com todos  nós. Não é à toa que uma parte de todos nós, apesar das cenas fortes de violência, continuava "torcendo" pelo Coringa. Todos nós somos oprimidos todos os dias pelo sistema em que vivemos. Uns mais, outros menos, cada um da sua maneira porque dor não se mede. Todos nós já nos sentimos humilhados, invisíveis, agredidos, abusados de alguma forma. E o mais grave é que a maioria de nós procura ignorar tudo isso o tanto quanto pode, e o nosso sistema também, calando todas as bocas seja com excessos de consumos, drogas ou medicações... O que importa é você ser funcional e voltar pra "caixinha". Sorria e responda "sim, está tudo ótimo!"

Quanta tristeza e dor está escondida por de trás das máscaras de sorrisos que todos nós vestimos todos os dias? Quanta raiva? Quantas frustrações? Quanta culpa?
Um sistema devorador e uma sociedade do espetáculo, onde todos tem que parecer "bonitos  e felizes" na foto do instagram. Não cabe tristeza no olhar. Não cabe falar de sofrimento no grupo de amigos. Não cabe gritar no trabalho que não aguenta mais a pressão. Não cabe ter raiva dos pais. Não cabe sentir dor... É tanta coisa em baixo dessa máscara que mais cedo ou mais tarde ela não aguenta, ela pesa, e cai.


Quando a sombra rompe a consciência de forma descontrolada a balança se inverte, pois o ego humilhado deseja o poder, deseja se sentir potente para compensar tanta sensação de impotência. E assim humilhamos, abusamos, julgamos, agredimos. Claro que pode não ser na mesma proporção que Arthur, o personagem do filme, mas que jogue a primeira pedra quem nunca fez isso de alguma forma. Porém isso ainda não é gritar a sua dor. Isso apenas gera mais dor, pra si e pro outro. Se o ego não estiver totalmente cindido, depois vem a culpa. E com ela mais dor não sentida. Mais grito não gritado.
É assim que vivemos.
Por isso o filme é tão pesado, porque ele é real.

A solução não é a violência.
A solução não é sorrir pra foto.
A solução também não é ir pro alto do monte meditar.
A solução está na escolha.
Mas para escolher é preciso ter consciência de quem somos.
Nós não somos apenas o que nos aconteceu.
Não somos a nossa historia de vida.
Não somos as nossas emoções nem os nossos pensamentos.
Então o que somos? Quem é você?

"Conhece a ti mesmo" algo dito há tanto tempo e que todos passam a vida evitando e fugindo até hoje. Se você se identifica com a sua dor você se torna a dor. Você precisa se lembrar que é mais do que isso. Autoconhecimento: essa é a única solução.

A identificação com a dor e o sofrimento é extremamente perigosa e ela te reduz a um estado de escravo de um ego ferido, onde você mesmo não tem escolha. Você apenas reage as situações, ou melhor, a sua dor reage as situações e não você de verdade.
A chave está em não negar nada e se você se identifica apenas com a sua dor, você nega uma grande parte de si mesmo, porque eu tenho certeza que por pior que seja a sua vida ela não pode ter sido feita unicamente de dor. Então se você se identifica só com isso você está também negando a sua totalidade.


Somos vida. E como toda a vida somos múltiplos e sempre em movimento e se somos múltiplos e nos transformamos, temos múltiplas escolhas. Quando nos identificamos com nossas emoções, nossos pensamentos, eles nos dominam e nos tornamos escravos deles.

Precisamos parar de fragmentar a vida em caixinhas de certo e errado bom ou ruim. Emoção é emoção, é energia. E deve ser sentida, olhada, compreendida, porque se for reprimida, ela explode. Precisamos fluir mais, sair da tensão entre os opostos. Julgar menos. Ouvir e ser ouvido. Acolher o outro e o mais difícil: acolher a si mesmo.

Como tantos, Arthur acreditou ter deixado de ser oprimido por um sistema para ser oprimido pela sua própria sombra. Ele não tinha escolha, porque ele não tinha consciência. Era apenas a sua dor reagindo. A consciência é chave. Inteligência emocional deveria ser algo discutido em todas as escolas. Precisamos aprender a sentir, conviver e lidar com as nossas emoções, sejam elas confortáveis ou não.

Precisamos buscar mais consciência sobre esse universo infinito que somos nós. Sem julgamentos, sem culpa, "sem caixinhas". Somos vida e toda vida é feita de maravilhas e horrores. Quando será que vamos parar de negar isso?

Todos nós, assim como Arthur, somos capazes de amar e de matar, todo ser humano é. Não adianta projetar os aspectos destrutivos de nós mesmos em figuras externas como o demônio ou "espíritos ruins", ou simplesmente culpar os nossos pais ou a política... afinal fazemos isso há tantos e tantos anos e só serviu para nos tornarmos mais inconscientes de quem somos. O potencial de vida e de morte mora dentro de cada um de nós. Estamos matando as florestas, os animais, o planeta, todos os dias. Estamos matando vida por desejos do ego. No fundo, no fundo, não é a mesma coisa?
E você? Onde você está destruindo a sua energia vital por desejos do seu ego?




Somos luz e sombra. Talvez ao parar de negar sempre um dos lados, saindo dessa oscilação entre opostos, poderemos nos tornar inteiros e fazer algo útil com tanta energia em potencial!

Essa é a escolha que temos todos os dias: Nos reduzir à um produto do meio, à um resultado dos acontecimentos, identificado com suas emoções e escravo delas. Ou nos reconhecer como vida, pulsante e fluída, e direcionar o curso dessa energia de forma consciente para onde for de nossa vontade.

Na minha opinião esse filme nos lembra da necessidade de sentirmos nossas dores, e de muitas vezes gritarmos nossas dores sim! De não sorrir nos dias em que estivermos tristes. De amar nossas tristezas assim como nossas alegrias porque ambas formam quem somos. De olhar profundamente para a nossas sombras e abraçá-las, para que não aconteça delas um dia nos dominarem e nos levarem a atos destrutivos para nós mesmos ou para outros. De usar a raiva como motor de revolução.
E em um sistema que se sustenta às custas de nossos medos e inseguranças, criar mais medo e insegurança através da violência, consigo mesmo e com o outro, é apenas reforçar o mesmo sistema.
Amar ao outro e a si mesmo nunca foi tão revolucionário!
Arthur não tinha consciência de nada disso. Mas você tem.

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