quarta-feira, 27 de abril de 2016

Arteterapia e "O coração da loucura"

Assisti o filme "Nise - O coração da loucura" e resolvi escrever esse post não apenas para indicar o filme, que é lindo, vale à pena ser visto, como para explicar um pouco mais sobre a Arteterapia, essa ferramenta tão rica e importante para a investigação do inconsciente.


Que a arte é uma expressão da psique ninguém tem dúvida, certo? Qualquer expressão artística é a solidificação no mundo externo do mundo interno do artista, é como se conseguíssemos passar a dar existência física e externa a imagens, símbolos e sentimentos internos, que de outra maneira ninguém conseguiria ver, além de nós mesmos. Qualquer que seja o meio; pintura, poesia, escultura, música, entre tantos outros; está sendo um veículo para transportar para fora de si fragmentos de um mundo interno não acessível a "olhos nus". 

Através da obra de um artista podemos entender melhor seus sentimentos, pensamentos, suas aflições e angústias, seu olhar sobre o mundo. E muitas vezes se observarmos analiticamente a obra completa de um artista, podemos ver as mudanças, fases e evoluções pelo que passou em sua vida.

“Psicologia e Arte: Apesar de sua incomensurabilidade existe uma estreita conexão entre esses dois campos que pede uma análise direta. Essa relação baseia-se no fato de a arte, em sua manifestação, ser uma atividade psicológica e, como tal, pode e deve ser submetida a considerações de cunho psicológico; pois, sob este aspecto, ela, como toda atividade humana oriunda de causas psicológicas, é objeto da psicologia” (Jung, 1971, p.54).

E porque não então usar a arte como ferramenta de análise do inconsciente? Todos somos artistas, pois todos temos a capacidade de criar. A criação é tirar algo de dentro de si e colocar pra fora, colocar no mundo, como um parto. Quem nunca fez isso através de um desenho, um texto ou uma simples palavra? Fazemos isso o tempo todo, tudo que nos cerca foi criação do homem, desde prédios e aparelhos eletrônicos, até filmes, livros e obras de arte. 

“Todo mundo deve inventar alguma coisa, a criatividade reúne em si várias funções psicológicas importantes para a reestruturação da psique. O que cura, fundamentalmente, é o estímulo à criatividade.” (Nise da Silveira)

Paciente pintando no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro onde trabalhava Nise da Silveira nos anos 50.


Através d o uso da Arteterapia na clínica estimulamos a criatividade do cliente, para que ele expresse seu mundo interno de forma instintiva, intuitiva e simbólica. O que por si só já traz resultados muito mais expressivos do que a terapia através da fala somente, pois a fala é uma expressão racional. Por ser uma expressão racional a fala é censurada pelos nossos próprios mecanismos de defesa, além de ser naturalmente julgada e analisada pela nossa própria mente.

Dificilmente alguém senta no seu consultório e fala tudo o que sente e pensa facilmente. Através da arte conseguimos "quebrar" esses mecanismos de defesa, pois estamos propondo uma atividade lúdica, e que a mente do cliente não tem como controlar. Ele apenas se expressa, e essa expressão é muito mais sincera, interna e sem auto-censura.

A partir dos símbolos, cores e formas que são representadas na arte da pessoa, podemos entender as questões que estão em evidência no seu inconsciente nesse momento, podemos olhar o seu mundo interno e utilizar nosso conhecimento para ajudar a pessoa a compreende-lo. Além disso, para casos graves a criatividade e a expressão simbólica ajudam a reatar o vínculo com a realidade.

Através de seus estudos, Jung percebeu que os esquizofrênicos que estavam com a psique muito desorganizada, não eram capazes de desenhar formas exatas, desenhavam riscos e imagens confusas. Conforme o tratamento ia evoluindo, começavam a desenhar formas e finalmente círculos. Os círculos representam a psique estruturada e coesa, a totalidade do ser, ou a expressão do que Jung chama de "Self".


"A Mandala é uma imagem arquetípica cuja a precisão é atestada através dos anos. A imagem circular representa a totalidade, ou, colocando em termos míticos, a divindade encarnada no homem." (C.G.Jung)

Nise da Silveira também percebeu exatamente o mesmo processo em seu trabalho no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, onde na ala de Terapia Ocupacional, incentivava os pacientes a fazerem trabalhos artísticos e procurava literalmente salva-los de procedimentos grotescos que a ciência da época incentivava, como eletrochoques e lobotomia. Nise teve contato com os livros de Jung, que a ajudaram muito em seu trabalho.

Em 1954, impressionada com a recorrência de mandalas nas pinturas de esquizofrênicos, ela escreveu para Jung, acerca deste material, sendo prontamente respondida e ensejada a sua colaboração. Isto a estimulou a apresentar no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique (1957), uma exposição com as pinturas e modelagens dos esquizofrênicos que ocupavam as sessões de terapia ocupacional no então Centro Psiquiátrico do Engenho de dentro onde trabalhava. Esta exposição ocupou cinco salas e se chamou "A Arte e a Esquizofrenia", que teve a presença e entusiasmo de Jung, seu reconhecimento e prestígio.

Nise e Jung em Zurique.

Nise da Silveira foi uma mulher incrível que trouxe uma contribuição indescritível para o desenvolvimento da Arteterapia e da Psicologia Analítica no Brasil. Em 1952, ela funda o Museu de Imagens do Inconsciente, no Hospital Psiquiátrico onde trabalhava, com obras de modelagem e pintura criadas por seus pacientes na instituição, valorizando-os como documentos que abrem novas possibilidades para uma compreensão mais profunda do universo interior do esquizofrênico. Entre os artistas-pacientes que criaram obras incorporadas na coleção dessa instituição podemos citar: Adelina Gomes; Carlos Pertuis; Emygdio de Barros e Octávio Inácio.

Poucos anos depois da fundação do museu, em 1956, Nise desenvolve outro projeto também revolucionário para sua época: cria a Casa das Palmeiras, uma clínica voltada à reabilitação de antigos pacientes de instituições psiquiátricas. Nesse local eles podem diariamente expressar sua criatividade, sendo tratados como pacientes externos numa etapa intermediária entre a rotina hospitalar e sua reintegração à vida em sociedade.

Nise da Silveira


Ainda hoje o Museu de Imagens do Inconsciente funciona no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, com obras de ex-pacientes e produções atuais feitas nos ateliês terapêuticos do museu. Ainda hoje existe uma equipe de profissionais dando continuidade ao maravilhoso trabalho de Nise, porém como o local não é mais um centro de internação, os clientes são livres para ir e vir e convidados a produzir nos ateliês. Um lugar incrível para se visitar, não deixem de ir.
Mais informações : Museu de Imagens do Inconsciente

O "Museu de Imagens do Inconsciente"  nos dias de hoje.


"É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade..." (Nise da Silveira)



Um comentário:

  1. Excelente texto.Sempre disse que só a arte "salva" e David disse somos tds estrelas instantâneas basta adicionar agua e mexer😉

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